Exposição e autocensura; Alison Bechdel, Elena Ferrante e Denise Fraga; A leveza de não precisar de redes sociais para garantir nosso sustento; Teatro é o museu de humanidades mais poderoso atualmente; e como ele se difere do teatro que fazemos todo dia para sermos pagos.
“Ela estava contente a beira do medo” - escreveu Alison em seu quadrinho “o segredo da força sobre-humana” que estou lendo atualmente. A verdade precisa ser dita: entrei na loja de quadrinhos do meu bairro enquanto estava entediada e o vendedor Bruno, por ser aparentemente apaixonado por quadrinhos - ou por vendas, fez meu dia ganhar brilho por um preço. Saí de lá sabendo que não deveria ter gastado.
Alison Bechdel tem muitas contribuições para a arte contemporânea. Quadrinista crítica e sensível, ela conseguiu colocar em palavras e ilustrações o que muitas de nós não sabíamos que sentíamos. Alison fez isso falando de sua própria vida, suas descobertas e experiências em primeira pessoa. Mostrando sua carne.
Em contraponto, amo que Elena Ferrante seja um mistério. Não sabemos nada sobre ela e ao mesmo tempo, ela conseguiu escrever sobre o íntimo de quase todas as mulheres. Suas obras são uma febre por serem brutalmente honestas com o que sentimos e não falamos para quase ninguém. Pra mim foi um respiro ler a honestidade daquelas palavras. Diversas vezes parei de ler e fiquei respirando por alguns minutos, absorvendo o choque, o trauma da honestidade.
Assim como foi uma flecha rápida e impiedosa o pequeno diálogo encenado pela Denise Fraga em “Eu de você", peça que assisti ontem. O diálogo era mais ou menos assim, entre uma moradora de rua e uma mulher dentro de um carro:
“Eu tô na rua porque aqui não preciso fingir nada não, senhora. Eu não preciso fingir que não estou te vendo, como você está fazendo comigo agora olhando o celular.
Eu sei que você está aí.”
Bem, todos aqueles que trabalham - sejam funcionários ou patrões, colaboradores ou gestores, parceiros ou terceiros - fingem algo durante seu dia. Não adianta. Talvez por isso sejamos tão intolerantes no transporte público e no trânsito: sabemos o que teremos de tolerar quando chegarmos ao nosso destino.
Escolhemos um papel ou somos impelidos a nos comportar de uma certa maneira por cultura de uma empresa ou qualquer outra razão. Fingimos ser o que não somos, gostar do que não gostamos, acreditar no que não acreditamos, vender o que não compraríamos. Tudo com um objetivo de mantermos nossos empregos e de alguma forma sermos reconhecidos dentro de um ambiente controlado. As coisas começam a se misturar, conheço pessoas que não vão a fundo descobrir o que gostam e outras que aprenderam que podem ser mais do que achavam, por terem fingido e em algum momento genuinamente gostarem. O fingir vira quem elas são, pro bem ou pro mal.
Quando passamos a querer trabalhar nossa imagem de alguma forma, seja para conquistar um lugar melhor na prateleira do amor, seja para melhorar nossos empreendimentos pessoais, podemos passar a fingir muito mais do que o esperado. Ficamos presos a diversos fingimentos o dia inteiro: no trabalho, no ambiente virtual, nos eventos sociais que você nem estava tão a fim de ir mas mantém a simpatia por ser delicada. Fazer parte de qualquer grupo demanda isso. Viramos personagens de nós mesmos.
Aconteceu comigo meses atrás quando coloquei na minha cabeça que minhas redes sociais só mostrariam minhas pesquisas artísticas e meus textos, nada mais de vida pessoal e demonstrações de afeto brutalmente honestas - “Chega! Preciso fingir que sou uma artista séria e escritora consistente!” - ou seja, simular que tenho uma vida plana e não cheia de relevo.
A prática da autocensura obviamente não funciona para artistas no geral e minha ideia não durou uma tarde sequer. Eu entendo quem consegue separar muito bem esses papéis que atua na vida, não é o meu caso (talvez um dia, quem sabe?). Minha expressão é íntima, meus textos são íntimos. A intimidade e a exposição são base dos meus ofícios e do que sinto prazer em colocar no mundo. Mas será que esse peso recai apenas para os artistas?
Qual o preço do teatro que fazemos todos os dias para seguir vivendo? Acho que não preciso tentar correlacionar algumas coisas aqui nessa newsletter, tenho convicção de que existe alguma cientista focada nisso. Também acredito que cada uma de nós sabe o preço que pagamos. Milhares de sketches no TikTok mostram nossos corpos relaxando brevemente após atuar em alguma reunião importante. Compartilhamos os memes da Rita Lee sendo brutalmente honesta porque sabemos que precisamos disso. Abrimos espaço para todos os memes brutalmente honestos. Rimos disso tudo, da nossa encenação. Sabemos o quê estamos fazendo, o por quê estamos fazendo e estamos medindo os custos desse espetáculo interminável e de poucos intervalos.
Sabemos que as conversas da coxia com aqueles que temos o mínimo de intimidade são imprescindíveis para seguir e conseguir rir de nós mesmos após ter que levar tudo tão a sério o dia inteiro. Se temos que fake until we make it, que finjamos ser aquilo que de fato queremos ser, em algum espaço de nossas vidas, em qualquer fresta.
A honestidade quer passar. Ela precisa de palco também.
Precisamos respirar. Precisamos rir.
Um beijo,
Ingrid.
Links úteis
Minha vida cheia de relevo no Instagram →.
A peça da Denise Fraga → .
O livro da Alison Bechdel.
A tetralogia da Elena Ferrante.